quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Fatos e horrores

 Há uma semana, li Auster falando que ele enfim "entrou no mundo dos fatos, dos pormenores cruéis". 

Frase que ficou. E que volta a cada momento em que a vida dá uma brecha. 

Enfim entrei "no mundo dos fatos, dos pormenores cruéis". Remexer a vida de alguém sem a permissão expressa, ver segredos, ódios e amores que não foram escritos para serem vistos por alguém além de quem os escreveu. 

O Horror da voz ao receber a notícia. Dos olhos contemplativos de quem mais amo aceitando o horror de seu destino. Me lembro da voz da minha tia ao telefone quando eu disse do diagnóstico mais temido. Aquele horror que atravessa a carne, a linha, e que só encontra mais horror do outro lado. Aquela voz, aquele horror, que espero nunca mais ouvir. 

A visão turva, a gente se esquiva, e as praticidades muitas vezes tentam nos desviar. Mas a vida, vez em sempre, há de nos lembrar dos horrores e dos pormenores cruéis.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

21:21

 21:21: Tomei um copo de um suco de uva, desses que me lembram à minha tia, essa pessoa com quem divido o nome, as dores e que me ensina tanto: de colocar água no suco denso a me apropriar de mim mesma. 

21:22: Pensei nas mulheres que não estão mais aqui. Penso na minha mãe e na minha avó. Nas ambiguidades que eram e que deixam; nas formas estranhas e sem fim que deixam para trás. Nas memórias que encerram em si um reino particular. E então percebo que "entrei no mundo dos fatos, dos pormenores cruéis."

21:23: Penso nas mulheres que ficaram. E ficaram tantas. E ficar, ainda que dos atos mais hercúleos, se torna um imperativo escolhido. Pelas que se foram, pelas que ficaram, pelos pormenores não tão cruéis, pelos pormenores de amor.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Lembrete diário

Os extremos são extremos em suas equilibrâncias diárias. 
Por que tão extrema, equilibrância?
As folhas se colocam em pé, ouvem a primavera chegar,
e me emudeço. Ao longe, o passarinho crava no ninho o
último dos gravetos: adequado.
O equilíbrio da insensatez afoga o peito.
E grita. O extremo aquiece em sua existência pacificada.
Equílibrios equilibrantes são da mais pura arte de controle. 
Desses de mordaças diárias. 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Vestígios

Das coisas que não te contam sobre a morte é que ela não é um evento pontual; a morte é constante e lenta para quem fica e o luto vive ao lado.
Ainda mais quando se tem uma mãe que era apegada a tudo e a todos, que colecionava porta copos que roubava dos bares, guardanapos timbrados e todas quaisquer pecinhas miúdas.
Ninguém te conta o que é viver na casa de quem já foi e que depois de dois anos a vida de quem foi ainda continua aqui. A história e as memórias ainda estão aqui em cada e em TODOS os bilhetinhos que você escreveu pra sua mãe quando era criança, de quando ainda escrevia espelhado. E que tendo uma mãe acumuladora, a história grita, pedindo um tempo do presente.
Não te falam também da pessoa morta que vive em cada coisa que você uma dia achou que tinha jogado fora, mas que ela, como quem se prepara para não estar mais aqui, guardou.
Guardou as joelheiras da aula de vôlei que você detestava;
as suas calças de moletim que as amigas desprezavam mas que eram as únicas que te serviam (além das de moletom, mas ainda não existiam Dua Lipa ou Billie Elish para fazer essas calças aceitáveis além do portão);
a cachorrinha Lessie que te fez sonhar em ter uma quando crescesse;
os milhões de papeizinhos com contas para ver se o dinheiro da poupança dava para ir viajar para o exterior;
sentimentos em papel nunca enviados ou falados;
as provas de alunos queridos de antes da sua própria vida;
rascunhos de luta, de sindicalismo, buscando melhores condições de trabalho para os servidores públicos;
as suas provas com notas sofríveis, quase como um lembrete de que há de sobreviver;
da secretária eletrônica que compramos para fugirmos das aulas e do trabalho;
do estojo lindo do Cascão entalhado em madeira em que ela mandou o seu amor pra mim.
Ninguém te fala que todo dia é como se ela morresse de novo.


Sorte de quem silencia seus mortos e suas dores. Ou seria loucura?

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

vermes

Tanto aconteceu desde a ultima vez que te vi.
Eu poderia escrever sobre tanto, mas há falta.
Não te falam do vazio - aquele que sufoca e te torna prisioneira.
Não te falam da culpa.
Das noites em claro, dos pensamentos repetitivos.
Não te falam do desejo de esvair, de se tornar incorpóreo, de ir junto.
Não te falam da angústia, que suspende o tempo e o tato.
Não te falam da raiva e da impossibilidade de ser.
Não te falam dos dias de dores físicas, choros no chão, gritos que ensurdecem. E não te falam das dores quietas. Do choro engolido e da farsa estampada.
Não te falam de como buscamos em nós um rastro qualquer deles.
Não te falam de como nos colocamos em seu lugar. De como tornamos impostores de nós mesmos.
Não te falam de como os reconhecemos em cheiros e manias - e que usurpamos sem pedir licença.
Não te falam da voz que não será mais ouvida. Do rosto que não terá mais vida.
Da vergonha da dor. Da vergonha do luto.
Não te falam dos pensamentos mórbidos, dos corpos deteriorados, dos vermes amalgamados.
Não te falam da morte.


domingo, 24 de janeiro de 2010

De tanto bater, meu coração parou.

Da angustia por não ter à angustia de não ter, mais.
Essa coisa que não acaba, que não desprega, que prega, que persiste como prega, praga.
Medo de acabar, de bastar-se numa noite.
Naquele fluxo, naquela intensidade, a insegurança que transborda em batimento. Acelera, acelera! Parou.

sábado, 31 de outubro de 2009

Cansei de esperar você

Terça-feira. Cinco horas da tarde. Chove.
E simplesmente me pergunto se, na próxima terça-feira, às cinco horas, estarei aqui, nessa janela, esperando.
No chão, essas cartas, esses poemas, essas palavras guardadas.
A simplicidade bate e me conta palavras de consolo ao pé do ouvido.
E deixo passar meu sentimento.