quarta-feira, 27 de maio de 2020

Vestígios

Das coisas que não te contam sobre a morte é que ela não é um evento pontual; a morte é constante e lenta para quem fica e o luto vive ao lado.
Ainda mais quando se tem uma mãe que era apegada a tudo e a todos, que colecionava porta copos que roubava dos bares, guardanapos timbrados e todas quaisquer pecinhas miúdas.
Ninguém te conta o que é viver na casa de quem já foi e que depois de dois anos a vida de quem foi ainda continua aqui. A história e as memórias ainda estão aqui em cada e em TODOS os bilhetinhos que você escreveu pra sua mãe quando era criança, de quando ainda escrevia espelhado. E que tendo uma mãe acumuladora, a história grita, pedindo um tempo do presente.
Não te falam também da pessoa morta que vive em cada coisa que você uma dia achou que tinha jogado fora, mas que ela, como quem se prepara para não estar mais aqui, guardou.
Guardou as joelheiras da aula de vôlei que você detestava;
as suas calças de moletim que as amigas desprezavam mas que eram as únicas que te serviam (além das de moletom, mas ainda não existiam Dua Lipa ou Billie Elish para fazer essas calças aceitáveis além do portão);
a cachorrinha Lessie que te fez sonhar em ter uma quando crescesse;
os milhões de papeizinhos com contas para ver se o dinheiro da poupança dava para ir viajar para o exterior;
sentimentos em papel nunca enviados ou falados;
as provas de alunos queridos de antes da sua própria vida;
rascunhos de luta, de sindicalismo, buscando melhores condições de trabalho para os servidores públicos;
as suas provas com notas sofríveis, quase como um lembrete de que há de sobreviver;
da secretária eletrônica que compramos para fugirmos das aulas e do trabalho;
do estojo lindo do Cascão entalhado em madeira em que ela mandou o seu amor pra mim.
Ninguém te fala que todo dia é como se ela morresse de novo.


Sorte de quem silencia seus mortos e suas dores. Ou seria loucura?